TEXTO
Sobre uma camada de carvão razoavelmente espessa, Ana Takenaka retira a matéria desenhando pelo apagamento. Por meio de linhas finas ou mais espessas, que apagam áreas maiores, a artista reúne imagens diversas sobre um fundo infinito: buraco negro no qual tudo flutua, sem gravidade.
Na parede coberta de carvão, manchas e inscrições parecem vestígios de outros tempos, produzidos num estado de presença e escuta. A linha delicada e vulnerável e a simplicidade do gesto fazem lembrar o exercício do desenho infantil. Para produzi-la, é empregado um estado quase meditativo que inclui a memória do corpo na ação, além da escolha cuidadosa do carvão vegetal, entre aqueles mais adequados ao risco.
Recentemente, Takenaka incluiu colagens que integram a composição e trazem figuras preenchidas (em citação à técnica chine-collé, oriunda da gravura), onde antes habitavam formas gráficas vazadas. Com elas, palavras encontram plantas que encontram ânforas que encontram barcos que encontram patinetes. Uma fusão de coisas como na nossa memória, lembrada e imaginada, na qual navegam tempos, registros, símbolos.
O trabalho de Takenaka nos coloca diante da ancestralidade dos símbolos e, consequentemente, da nossa separação deles ao apartarmos arte e magia. Segundo a filósofa estadunidense Susanne K. Langer, a função dos símbolos é a “articulação e apresentação de conceitos (…). Um símbolo é compreendido quando podemos conceber a ideia que ele apresenta”. Ou seja, quando a ideia não pode ser identificada, o valor simbólico da imagem não existe. “Um símbolo é usado para articular ideias de algo sobre o qual desejamos pensar e, até termos um simbolismo razoavelmente adequado, não podemos pensar nele”. Fica-se, assim, no vazio da simbolização.
A crítica feminista estadunidense Lucy Lippard, no final dos anos 1970, diz algo parecido. Ao escrever sobre a justaposição de imagens pré-históricas e obras contemporâneas pelo método da colagem – algo muito parecido com aquilo que Takenaka realiza – Lippard aponta para a ausência de um compartilhamento de significados relativos aos símbolos na experiência atual. A arte, na vida pré-histórica, era a linguagem compartilhada entre a comunidade que integrava os dias como o sono, a fuga, a caça e a fome.
Os símbolos são a síntese de múltiplas realidades em transformação — formas mais elevadas do que a simples mercadoria, porque são, ao mesmo tempo, veículos de diversos níveis de realidade e de diversas necessidades comunitárias. Talvez o que os monumentos pré-históricos de pedra ainda comunicam seja, simplesmente, a necessidade humana de se comunicar e a necessidade de um intermediário simbólico que sempre permitiu que os desejos de criadores e receptores se unissem ou se cruzassem.
Porém, ao “ler” os símbolos de Takenaka, me pergunto se, de fato, perdemos nosso chão comum que abrigava essas imagens. Ainda entendemos o barco e a ânfora, a planta e a cruz. Mesmo assim, muitos símbolos circulam na experiência digital pulverizadora e, com isso, transcendem especificidades culturais. São consumidos por aquilo que aparentam.
Ao refletir sobre símbolos que não simbolizam, impossível não pensar na obra de Cy Twombly, cuja “escrita” de linhas finas e brancas era realizada sobre uma superfície de betume – uma espécie de lousa sobre a qual era possível riscar, inscrever, garatujar. O gesto de rabiscar remetia a uma sobreposição de tempos, evocando o passado das paredes das cavernas e os muros da metrópole.
A memória da humanidade ocidental interessava tanto a Twombly que o artista se transferiu para Roma, buscando a convivência com a cultura mediterrânea antiga. Objetos da Antiguidade não eram citados diretamente em suas pinturas-desenhos, mas habitavam as camadas de história com as quais ele estava dialogando – mitos apareciam principalmente nos títulos das obras (por exemplo, Leda e o Cisne, 1962).
Esse elemento de sobreposição de tempos pela justaposição de imagens gráficas é semelhante à estratégia de trabalho de Takenaka, embora a artista paulista, quando utilizando-se de letras que compõem palavras, o faça de modo a indicar claramente os termos nomeados. As palavras, por vezes espelhadas ou realizadas ainda por meio de máscaras – arrancando delas a caligrafia humana –, comentam o tempo, dizem respeito a ideias abstratas ou lembram ideogramas japoneses (sem que necessariamente os sejam). O fato de algumas palavras poderem ser identificadas adiciona sentidos que se unem às imagens – palmeiras ou outras plantas tropicais, ânforas, barcos (creio que vi uma metralhadora).
Takenaka não nega o espaço digital onde tudo conflui, preenchido pela imagem pobre do infinito repost. Ela colhe essas imagens e, ao retirá-las do caldo informacional, reposicioná-las e cuidá-las, oferece a elas um lugar privilegiado de volta à pintura-desenho que realiza. Essas imagens podem tornar-se site-specific (caverna) ou animação (digital) justamente porque operam na sobreposição dos tempos.
Embora Cy Twombly seja uma referência frequente quando se fala em pintura caligráfica no contexto das abstrações de meados do século XX, a artista argentina Sarah Grilo desenvolveu uma poética semelhante, atuando em Nova York, e, depois, Paris. A artista produzia pinturas lembrando muros grafitados, com rabiscos, símbolos e garatujas, por vezes indecifráveis. Algumas das inscrições são palavras retiradas de revistas da época, indicando a presença da cultura de massa no seu olhar; em outras, veem-se comentários políticos, como quando utiliza a palavra “war”. Takenaka explora a mesma estratégia ao incluir, no espaço pictórico de seus trabalhos, palavras que a mobilizam, política e socialmente, desenhadas pela máscara (curiosamente, ela escolhe o sentido oposto da palavra escolhida pela artista argentina: “paz”).
Nos anos 1950, esse tipo de pintura-desenho caligráfica demonstrava a procura por linguagens, gestos e símbolos de culturas não-hegemônicas como referências para arte abstrata de cunho universalista. Atualmente, não é o universalismo que é procurado, mas as especificidades individuais que, ao encontrarem elementos de tempos e espaços diversos, compõem essa “humusidade” complexa do signo gráfico.
Mergulhamos na espacialidade cósmica dos fundos infinitos de Ana Takenaka, onde símbolos e grafismos pairam, apagamentos criam a sensação fantasmática de objetos do passado, linhas sugerem vestígios de ruínas e restos de objetos. A sensação é de vigília, quando lutamos para permanecer alertas diante de imagens da realidade que se confundem com sonhos – estes querendo nos dominar a consciência. Quase fechamos nossos olhos, mas algo nos desperta: memórias que vêm com os símbolos, imagens navegando nossas mentes. É preciso ancorar.
Ana Avelar,
fevereiro de 2025
ARTISTA
Ana Takenaka (São Bernardo do Campo – SP, 1987) é artista e educadora graduada pelo Centro Universitário Belas Artes de São Paulo. Na sua prática pesquisa o desenho, o reconhecendo como linguagem primordial e inerente ao desenvolvimento humano, e sua inter-relação com outras linguagens como a gravura em metal e o papel artesanal, técnicas que a artista domina e subverte buscando refletir sobre a coexistência de diferentes realidades, e sobre aquilo que está "entre" (in-between). Em 2022 foi vencedora do 10th Anniversary Award para realização de uma residência gráfica no Art Print Residency, Barcelona/ES.

VIGÍLIA
ANA TAKENAKA
Fev 4 — Mar 15, 2025
Curadoria: Ana Avelar













VISTAS DA EXPOSIÇÃO









OBRAS