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2 Abr — 26 mai, 2024

VACILANTE

RENATO CASTANHARI

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Precisaria trabalhar – afundar –

– como você – saudades loucas –

nesta arte – ininterrupta –

de pintar –

A poesia não – telegráfica – ocasional –

me deixa sola – solta –

à mercê do impossível –

– do real.

poema de Ana C.,


Vacilo da vocação (1982)


Renato Castanhari pinta suas telas no curso de um confronto diário com a materialidade da pintura. Escolhe cuidadosamente os tecidos que vai esticar em chassis de tamanhos específicos, consciente das escalas que quer explorar, dos gestos que cabem na tela, a contenção da cor na superfície, a absorção do óleo e os efeitos físico-químicos dos contatos entre as coisas que fazem um quadro. Essa disciplina detalhista pode soar como a trajetória certeira rumo a uma formulação laboratorial que se encerra em si mesma, controlada e sem pontos de escapatória, virando um conjunto de afirmações materializadas em uma unidade visual inflexível. No entanto, o conjunto de suas obras apresentado aqui, evidencia em seu enfrentamento obstinado com a prática da pintura, uma vocação vacilante, afeita ao recuo, à oscilação, à surpresa que rompe a monotonia do método. Suas telas vacilam de uma abstração geométrica ciente do construtivismo, formando grids ou janelas de colorismo; até os recortes de paisagens latentes de uma abstração informal entregue às manchas líquidas, contornos derretidos e impastos vazando da tela.


Em seu ateliê, além das tintas, pinceis e telas, se encontram muitos livros e catálogos de exposições que remetem a uma história da abstração na pintura brasileira que, em alguns momentos, chegou a cravar bandeiras em contornos imprecisos, afirmando limites em terrenos estéticos movediços, fronteiras em disputas não apaziguadas, gerando uma linhagem certeira e uma ideia de “vocação nacional” em torno à presença da geometria. Entre ser construtiva, concreta e sensível, essas definições se mostram, hoje, arbitrárias e insuficientes. Mas, quando olhamos para trás, a visão é mediada demais por carga de narrativas teleológicas sobre o desenvolvimento de uma linguagem rumo a seu ápice, ou esgotamentos. Vemos os desdobramentos da abstração ao neoconcreto, com seus manifestos e réplicas programáticas. Tanta coisa já foi feita em pintura que a linguagem se sobrecarrega em narrativas ávidas por sucessivas revoluções, afirmações de um caminho que se aprofunda linearmente.


Por outro lado, uma imersão mais detida aponta para tantas camadas de referencialidade na abstração (sobre a qual se insiste apregoar uma pureza, uma autonomia com relação a discursos), quanto para um cerne abstrato no exercício da figuração. As fronteiras ou passagens entre figuração e abstração vão sendo colocadas em dúvida, em suspensão, não se consolidam na experiência de criação, nem de contemplação. Numa mesma tela, pulsam muitas vocações juntas: elaborações mentais, gestuais, matemáticas, espirituais, de pesquisas cromáticas, experimentações óticas e materiais, curiosidades filosóficas sobre a forma, o plano, os signos, exercícios de ateliê, insistências, titubeios, soluções desastrosas, e fracassos exitosos…

Na produção de Renato, esse vocabulário se apresenta em tensão criativa do contato com a carga pesada da linguagem. Pintar, no presente, é pintar em diálogo consciente com o que já foi feito – projetado nas paredes de museus, nas enciclopédias e revistas de arte, exposições, ateliês e portfólios online de artistas de várias gerações. Configura-se aí um desafio: como trabalhar, se afundar na arte ininterrupta de pintar?


As pinturas de Renato reunidas aqui, demonstram bem as diferentes direções de seu fazer pictórico tão insistente no rumo de uma certa abstração vocacionada ao vacilo. Uma entrega laboriosa à pintura que se desenrola plena de incertezas, lidando de forma humorada com o fracasso das grandes afirmativas, do próprio valor de colocar mais pinturas no mundo. Sua prática é vacilante no sentido em que desconfia de si mesma, analisa seus próprios rumos e calibra os destinos de uma trilha que sabe não ter fim em si mesma.

Cronologicamente, a seleção de obras de Renato que apresentamos aqui parte de Gruta (2019) e Diluição (2020) - uma dupla que já ostenta, em seus títulos, o titubeio entre a referencialidade à paisagem e a autorreferencialidade pictórica. Em 2022, suas pinturas, nomeadas a partir de suas próprias paletas cromáticas, perseguiram uma fórmula de composição redundante ao primeiro olhar, só que sempre derrapando à paisagem, à profundidade de um espaço vivo, cheio de signos. Já em 2023, a estrutura composicional de uma cruz no centro da tela vai ganhando força, se afirma no encadeamento de uma série de janelinhas; nesse conjunto, uma aparente unidade se desequilibra na percepção da hesitação de um plano, abrindo na parede alguns recortes para diferentes profundidades, ora a superfície da tela, ora a noite sombria de um bosque, ou o céu matinal em Laranjas vacilantes.


Nessa entrada para 2024, coincidindo com a conclusão de sua tese de doutorado em artes visuais (na qual examina as noções de concreto e intangível como aspectos opostos em sua própria pintura), vemos emergir uma série nova, escancarando as janelas das composições mais geométricas dos anos anteriores, e se lançando ao arrebatamento afetivo da espacialidade. Os horizontes que apenas resvalavam de seus grids vão tomando vida com diagonais mutantes, verticalidades que rasgam a tela e a fazem pulsar, como nos casos de Terreno incandescente Tempestade quente, abstrações em que se afirmam paisagens voláteis. Tálisson Melo. Março 2024.

Renato Castanhari (1988) é mestre e doutor em Artes Visuais pela Universidade de São Paulo. Concentra sua pesquisa e produção artística em pintura. Suas principais exposições incluem: Da visão à cor (Espaço das Artes ECA-USP, São Paulo, Brasil, 2024), 28o Mostra de Arte da Juventude (Sesc, Ribeirão Preto, Brasil, 2017), Apagamento (Galeria Sancovsky, São Paulo, Brasil), 66° Salão Paranaense (Curitiba, Brasil, 2017), 23° Salão de Artes Plásticas de Praia Grande (Praia Grande, Brasil, 2016), 44° Salão de Arte Contemporânea Luiz Sacilotto (Santo André, Brasil, 2016), 7o Salão dos Artistas Sem Galeria (São Paulo, Nova Lima e Goiânia, Brasil, 2016), 21o Programa Nascente (Centro Universitário Maria Antonia USP, São Paulo, Brasil, 2013) e Trezetreze (Paço das Artes, São Paulo, Brasil, 2013).

Obras

Vistas da exposição

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