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TEXTO

... quem deseja ver, ou melhor, olhar,
perderá a unidade de um mundo fechado
para se encontrar na abertura desconfortável
de um universo agora flutuante,
entregue a todos os ventos do sentido.
Didi-Huberman

O percurso de Ana Luiza Álvares se fez na multiplicidade e se refaz, também, a partir da dimensão heterogênea do mundo e da presença das coisas. Seu trajeto inclui muito do silêncio e da sua imensidão lírica, condensados em pinturas que tornam visíveis a aparição epifânica dos objetos e o mistério daí oriundo, fabulando pulsações para além da representação.

Nascida em uma grande família que se enveredou para o esporte, ainda na infância Ana Luiza descobriu a dimensão do gesto em outro lugar: com lápis de cera percorreu o mundo das cores e, com singularidade, encontrou na pintura o solo fundamental de seu trabalho. Foi aluna de Carlos Fajardo e Luiz Paulo Baravelli na Escola Brasil – centro de experimentação artística concebido em 1968 por um grupo de artistas paulistas – onde aprendeu a técnica do desenho cego, em que se desenha observando um objeto, sem olhar para o papel. Ingressou na FAAP para cursar desenho industrial e migrou para artes visuais, estudando com Nelson Leirner e outros artistas que foram fundamentais em seu percurso. Depois de uma temporada na Europa, retornou ao Brasil e frequentou o ateliê organizado por Sérgio Romagnolo e Leda Catunda no MAM, lugar onde sua relação com a pintura ganhou espessura própria. Sua linguagem surge de uma observação que emerge do silêncio e da sua sensibilidade extrema. No trabalho de Ana Luiza comparecem o acento na gestualidade e a acolhida da imperfeição como possibilidade inventiva.

Em um exercício compenetrado, na busca de encontrar seu movimento próprio e forjar seus ritmos pela cor e texturas, Ana Luiza captura com maestria aquilo que, nas palavras de John Berger, pulsa das imagens para além do visível. Seus gestos serpenteiam vibrantes e depositam-se sobre a tela criando atmosferas enigmáticas. De sua pintura brotam imagens que dizem da espera, do presságio, de um mistério gestado na sobreposição entre intimidade e aparição. O improvável se revela na fugacidade de imagens vacilantes que deixam marcas, com paisagens intimistas, oníricas e fabuladas que portam algo quase oriental: uma lâmpada, um pendente, um aspirador de pó, um piano em solidão abissal, um vaso, um extintor de incêndio, um conjunto de fósforos à espera do gesto incandescente.

O corpo da tela se mistura ao da tinta, deixando que as coisas apareçam e ganhem espaço. Tudo vive em estado de latência ou em vias de desaparecer, em um movimento ambíguo e essencial que reconhece, ao mesmo tempo, ausência e presença. Muitas vezes há uma espécie de névoa ou borrão que cria um corpo pictórico próximo ao sonho, em que um objeto revela e condensa outros. Nada parece literal, mas sim uma epifania, como algo que surge como mancha naquilo que está preestabelecido, como rasura no que está pronto e repleto de significado.

Ao ativar e transmutar tudo, a artista cria outros sentidos e, de uma limitação, faz potência de vida e invenção. Ao tomar partido das coisas e objetos, se utiliza de sensações subjetivas e experiências íntimas e cria uma presença cromática única. Com tinta a óleo reinventada por uma antiga técnica de pintura – a encáustica – ela revela a opacidade da presença das coisas com um certo efeito de turvação, fazendo uso singular da cartela de cores.

Além da habilidade de pintar em acrílica ou óleo e de reinventar a fatura a todo instante, Ana Luiza pinta em diversas escalas, das mais diminutas às maiores, sempre atenta à espessura e ao fulgor pulsátil que se deposita nos objetos, quaisquer que sejam suas dimensões. O que se destaca é algo evocado e invocado através do ritmo, peso, massa, textura. Uma pintura subjetiva e sensível que se constitui no jogo entre paisagens internas e pequenas manifestações se apresenta. A artista firma um compromisso ético com a presença das coisas e sua irradiação, abrigando a dimensão luminosa e a obscuridade. Do vazio cria significados inesgotáveis, inquietantes e movediços, para além de representações estáticas e miméticas. Ao unir fragmentos, aparições e vestígios do mundo, a artista reafirma uma rara liberdade estética.

Para Jacques Lacan, a arte se caracteriza por um certo modo de organização em torno do vazio. Como um oleiro, o artista cria a partir do vazio, da experiência lacunar com a imagem. Ana Luiza é a artista que se apresenta, nos ensinando a olhar mais uma vez para tudo, nos revelando que cada coisa a ver, por mais exposta ou neutra em aparência, porta sempre um mistério que lhes escapa.

O ato de ver é uma operação inexoravelmente inquieta e Ana Luiza expõe, com sua pintura, as “inquietantes estranhezas” reveladas pela psicanálise, um território imantado pelo inacabamento e pela abertura. A artista captura a irrupção do tremor e da fulguração, um lugar em que as imagens ardem em contato com o real, como na poesia de Herberto Helder: “E o poema cresce tomando tudo em seu regaço. E já nenhum poder destrói o poema. Insustentável, único, invade as órbitas, a face amorfa das paredes, e a miséria dos minutos, e a força sustida das coisas, e a redonda e livre harmonia do mundo”.

Bianca Coutinho Dias,
março de 2025

ARTISTA

Ana Luiza Álvares (1954) iniciou sua formação artística em 1971 na Escola Brasil: dois pontos, em São Paulo, ao lado de artistas como Baravelli, Carlos Fajardo, José Resende e Nasser. Em 1981, formou-se na Faculdade de Artes Plásticas da FAAP, também em São Paulo. Continuou seus estudos com o curso de Desenho e Criatividade no MAM-SP em 1985, sob orientação de Cássio Michelani. Em 1991, frequentou o curso de Aquarela Avançada, também no MAM-SP, com Ubirajara Ribeiro. No ano seguinte, integrou o Ateliê Livre do MAM-SP, com orientação de Sergio Romagnolo e Leda Catunda, e participou do Ateliê Livre Oficina Três Rios, orientado por Sergio Fingermann e Osmar Pinheiro. Em 2022, participou do curso “Uma História Recente da Arte Brasileira”, coordenado por Marcelo Salles.

Sua trajetória expositiva inclui diversas mostras coletivas, entre elas: Itaú Galeria em Campinas e São Paulo (1993); Salão de Arte Contemporânea de Ribeirão Preto (1994); V Bienal Nacional de Santos e Salão de Arte Contemporânea de Santo André (1995); 54º Salão de Arte Contemporânea Paranaense em Curitiba (1996); Salão Nacional Victor Meireles em Florianópolis, 55º Salão de Arte Contemporânea Paranaense e Salão de Arte Contemporânea de Piracicaba, onde recebeu prêmio aquisição (1997); além da exposição São Paulo iço la bas em Bobigny, Paris (2001), e da mostra Paisagens esquecidas, naturezas mortas e Retratos apagados, com curadoria de Renato de Cara no Edifício Vera (2023).

Entre suas exposições individuais destacam-se: Itaú Galeria em Campo Grande (1993), Centro Cultural UFMG em Belo Horizonte (1995), Funarte São Paulo (1999), Centro Cultural UNICID em São Paulo (2000), Galeria de Arte Monica Filgueiras (2004), e Desenho com Dudi Maia Rosa no MAM-SP (2014).

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FIGURAÇÕES DO INVISÍVEL

ANA LUIZA ÁLVARES
Abr 1 — Mai 3, 2025
Texto: Bianca Dias

VISTAS DA EXPOSIÇÃO

OBRAS

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